"O vigésimo aniversário desta Corte, muito justamente chamada de Tribunal da Cidadania, é dia de gala para a justiça brasileira.
E o simples fato de esse dia merecer tais celebrações, reunindo autoridades da cúpula dos demais Poderes, mostra o sincero e espontâneo reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à sociedade, confirmando que trilha o caminho certo, a bela Via da Democracia, a maior já percorrida em nossa história republicana.
Significa, para nós, que a Constituição de 1988 foi sábia ao conceber como fundamental à preservação do Estado Democrático de Direito, antídoto à Ditadura, um Poder Judiciário mais independente, vigilante, forte e altivo.
Inamovível, para que resista às pressões dos governantes; com vencimentos irredutíveis, para que não sofra a chantagem da sobrevivência econômica; vitalício, para que não mais façam parte da nossa História exonerações ou aposentadorias compulsórias como as que vitimaram Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima.
No iniciar desta semana, os dirigentes dos três Poderes firmaram, em ato solene, o "II Pacto Republicano por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo". É significativo que tal ato tenha tido como eixo a defesa da Justiça. E é simples entender: sem Justiça não há democracia.
Dentre outros compromissos assumidos, apontou-se a necessidade de se firmar uma agenda conjunta em que se estabeleçam condições de garantia dos princípios constitucionais. É uma demonstração inequívoca de que os Poderes compreenderam que são harmônicos e interdependentes, nem um melhor do que outro. Todos absolutamente iguais. Todos efetivamente compromissados com o ideal de Justiça, cada qual se comprometendo a fazer sua parte.
E é assim que deve ser quando pactos são firmados: cada um dando o melhor de si para que o compromisso saia do papel e ganhe o colorido da realidade. Pactos são para ser cumpridos, sob pena de frustrarem aqueles a que se destinam.
Tenho a certeza de que o II Pacto agora celebrado, firmado por republicanos de primeira linha, não será utilizado para iludir a população, ainda mais aquela carente de Justiça. Certamente será um pacto para fazer valer.
A advocacia brasileira, constitucionalmente parceira na administração da Justiça, fará a sua parte, sugerindo, debatendo, apresentando propostas que visem tornar o "Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo".
Exatamente por assim compreender, não posso deixar de registrar, neste Tribunal da Cidadania, que o Pacto já nasce sob gravíssima ameaça, sem perspectiva de crescimento. Nasce quando o Senado Federal, um dos seus signatários, acaba de aprovar projeto de emenda constitucional que atinge mortalmente outro de seus signatários, o Poder Judiciário.
Falo da recente aprovação pelos senadores da PEC 12, também conhecida como PEC do CALOTE.
A simples inclusão, no corpo da Constituição-Cidadã, de uma regra que estimula o calote já justificaria a sua não aprovação. Afinal, dívida é para ser paga, como está fazendo o Brasil perante os seus poderosos credores internacionais.
Mas a agressão é ainda maior. A dívida que não se quer pagar é aquela oriunda de sentença judicial, coberta pelo manto sagrado e constitucional da coisa julgada, livre de falsificações, direito fundamental do cidadão. É essa dívida, judicialmente reconhecida, que a emenda transforma em objeto do calote oficial.
Aprovada a emenda, o Poder Legislativo, signatário do Pacto Republicano dos três Poderes, estará dizendo que o sentimento do Poder Judiciário, sua sentença, sua independência e soberania nada valem - não passam de um nada jurídico.
Mas não se pense que agressão ao Poder Judiciário acaba aí. Ousou-se mais. Ao limitar, inconstitucionalmente, o poder coercitivo da decisão judicial a até dois por cento do orçamento estatal, a PEC não apenas estabeleceu que o Judiciário vale dois por cento do Executivo, que suas decisões serão submetidas às secretarias de Fazenda estaduais e municipais, mas, sobretudo, criou um precedente perigosíssimo: concede-se autorização ilimitada para que se cometam abusos diversos contra o cidadão.
Os governantes estarão livres, daqui por diante, para confiscar direitos civis, mesmo aqueles apontados constitucionalmente como fundamentais. Estarão autorizados, inclusive, a reduzir aposentadorias, confiscar vencimentos e propriedades, vingar-se de adversários, ameaçar discordantes, desviar recursos e reduzir repasses orçamentários, pois o Judiciário não mais os coibirá. A cidadania passará a rezar para não seja agredida por agentes e servidores públicos que não honram as funções, ansiosos por propina, que embargam dolosamente obras, que cobram multas extorsivas ou que, por simples desleixo, provocam acidentes de automóvel. Os faltosos estarão impunes, livres até de ação regressiva.
Em plena Era da Responsabilidade Fiscal, criaremos a Era da Irresponsabilidade Estatal.
Somente para exemplificar, uma decisão judicial transitada em julgado no Estado do Espírito Santo, em face do volume de precatórios lá acumulados, por inépcia administrativa, será cumprida em cem ou mais anos. É até uma trágica ironia considerar imortais os cidadãos do Espírito Santo, talvez porque, fazendo valer o seu sacro nome, tenham os seus créditos judiciais ressuscitados em seus netos ou bisnetos. Lá, aprovando-se essa emenda, as sentenças judiciais só serão cumpridas em sessões espíritas, quando o credor já pertencer ao mundo dos mortos.
E ainda acreditando que a agressão fora pouca, além de se aniquilar a imparcial ordem cronológica dos pagamentos dos créditos amparados pela coisa julgada, criou-se o mercado de leilão da sentença judicial.
Propõe a emenda que se leiloe o Poder Judiciário. O melhor preço não será aquele equilibrado pela balança da Justiça, imortalizado pela deusa Themis. Não, o preço será dado pelo tamanho da fome e da necessidade do cidadão. Aquele que não puder esperar décadas para ver cumprida a sentença que por anos e anos lutou, acreditando no Poder Judiciário e na missão que lhe é atribuída pela Constituição-Cidadã, deverá ceder o seu direito, o bem precioso, imutável e sagrado da coisa julgada.
O seu inabalável crédito, duramente obtido, não passará de moeda-podre, papel tóxico, termo vulgarizado pela crise mundial do sistema financeiro.
De uma só penada, sob a égide do bem intencionado "II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo", temos o seu revés: o anti-Pacto. A PEC 12 é o anti-Pacto Republicano.
Caso seja aprovada pela Câmara dos Deputados, estabelecerá dois tipos de Poder Judiciário: um, destinado ao cidadão, querendo mesmo ser "acessível, ágil e efetivo", nos moldes concebidos pela Carta-Cidadã; o outro, assumidamente cruel, moroso, desrespeitoso, protegendo o Estado, fazendo repristinar a velha filosofia da Carta-Estatal do autoritarismo.
Um, com prazo de validade para o cumprimento das decisões judiciais. O outro, com decisões a perder de vista, onde não se aplica o princípio da razoável duração do processo. Um, para valer, coercitivo, igual para todos. O outro, um verdadeiro e ofensivo faz-de-conta, pois o que conta é o peso do Executivo, não mais o Sistema de freios e contra-pesos .
Os defensores da emenda alegam que o Estado não tem recursos, que a emenda socorre os cofres municipais e estaduais. Ora, se a União está em dia com os seus precatórios, da mesma forma que muitos estados e municípios, por que outros não estão?
Simples: porque governantes descompromissados com a cidadania e com o Poder Judiciário não honraram seus compromissos. E são esses mesmos governantes os beneficiários das suas próprias torpezas. É justo? É razoável?
E não é só: num país em que jamais faltou dinheiro para obras públicas faraônicas, desperdícios de verbas oficiais, propagandas pessoais pagas o erário, alugueis de avião, cartões corporativos, servidores apadrinhados ou fantasma, má-gestão e que socorre bancos, montadoras de automóveis e concede anistia fiscal não pode se alegar que falta dinheiro justamente para o cidadão. E não se trata de socorrê-lo, mas de ressarci-lo de subtrações que lhe foram impostas pelo próprio Estado.
Não sei o que é mais absurdo: se a PEC 12 ou os argumentos em sua defesa. O que sei é que é a PEC da anti-cidadania. É a anti-Constituição-Cidadã. Fere fundo toda a sua generosa filosofia humanista. Revoga-a na prática. Relativiza o conceito histórico de dívida, sob o qual se estruturou nossa civilização, deixando de vê-la como compromisso jurídico e moral a ser cumprido, para tornar-se uma hipótese, uma barganha, em que cabe ao mais forte estabelecer a regra do jogo - e cumpri-la se lhe convier.
Perdoem se ocupo esta tribuna, em dia de festa, com assunto de tal teor. É que sendo este o Tribunal da Cidadania, em que o cidadão, mais que em qualquer outro, se sente representado e no qual deposita sua fé e esperança na justiça, não haveria espaço mais propício para expressar sua angústia, diante de tal ameaça.
Creio que é uma forma de a advocacia, parceira da magistratura na produção de justiça, homenagear esta Corte, denunciando a agressão que esta emenda lhe quer perpetrar.
A OAB é solidária ao Judiciário nessa causa, que pretende diminuí-lo perante o sistema tripartite. Por essa razão, associa-se às manifestações de protesto dos órgãos representativos da magistratura contra a PEC 12 - a PEC anti-Pacto, a PEC anti-República.
Aproveito aqui para convidar os ilustres ministros e os demais presentes para que se associem à passeata em defesa da cidadania e do Poder Judiciários, que advogados, magistrados, servidores públicos e diversos segmentos sociais farão, no próximo dia 6, na Esplanada dos Ministérios, culminando com a entrega de um manifesto ao presidente da Câmara dos Deputados, também um dos signatários do II Pacto, solicitando que não seja aprovada a inconstitucional e ofensiva PEC.
A hora é de união de todos os que acreditam na necessidade de um Judiciário soberano, respeitado em suas decisões. Não se trata de uma causa exclusiva de juízes e advogados, operadores do Direito, mas de toda a sociedade brasileira. A mesma que hoje celebra os vinte anos deste STJ.
Concluo renovando as congratulações da advocacia a este STJ, desejando que se fortaleça cada vez mais no cumprimento de sua missão institucional, tornando cada vez mais altiva e ativa a auto-explicativa nomenclatura de Tribunal da Cidadania que a sociedade brasileira tão justamente lhe atribuiu.
Parabéns e muito obrigado."
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