Jornal Terceira Via
"Essas eleitoras votam enquanto vivas, mas no fundo de seus âmagos, sentem a morte a cada dia"
A Corregedoria Eleitoral do Espírito Santo vai apurar a denúncia de uma
mulher, falecida há 11 anos, que “votou” para prefeito no município de
Nova Venécia (ES) nas últimas eleições. O título da falecida é o de nº
007666521473 e seu voto foi computado, na Zona Eleitoral 0030, sessão
0162. Seu nome: Carmem Mota Lusquinho.
No TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a Presidente Carmem Lúcia e as
Ministras Luciana Lóssio e Nancy Andrighi evitaram comentar o voto
devidamente validado e atribuído a uma falecida.
Não obstante o caso acima, não restam dúvidas de que, em nosso país, o
Sistema Eleitoral Brasileiro está sendo aperfeiçoado a cada pleito. A
apuração dos votos se dá com mais presteza, sendo os eleitos, conhecidos
com maior celeridade.
Aproveitando a situação inusitada acima descrita, ocorrida no estado
capixaba, faço uma indagação: quantos eleitores mortos/vivos votaram nas
últimas eleições?
A falecida Carmem (que Deus a tenha) não terá a oportunidade de saber
se o seu voto valeu à pena. Afinal, no céu, suponho que não haja debate
eleitoral, tampouco meios de comunicação sofisticados para que a nobre
eleitora possa tomar ciência da vitória ou derrota de seu candidato.
Na Terra, que para muitos é o verdadeiro inferno, milhões de ‘Carmens’
morrem a cada dia. São eleitoras que, apesar de estarem em dia com a
Justiça Eleitoral, falecem, em doses homeopáticas, por inanição, falta
de moradia e assistência à saúde.
São ‘Carmens’ que trabalham mais de doze horas por dia nos canaviais.
Labutam nos lares, nas ruas e ganham salários de morte. ‘Carmens’ que
defendem as suas remunerações com muito suor, dignidade e perseverança.
Vivas por fora, mas mortas por dentro.
Com certeza, há uma Carmem em cada canto. A Carmem-mãe, a pedinte, a
ladra, a professora, a mendiga. Existem ‘Carmens’ nos sinais de
trânsito, cheirando cola, abortando e sofrendo por tudo quanto é motivo.
Nas comunidades carentes, as ‘Carmems’ sofrem com os assassinatos de
seus filhos - resultado das falidas políticas de segurança - com o choro
faminto da prole e da saudade de sua terra natal. Algumas delas passam a
vida na boleia do caminhão, ora trabalhando, ora satisfazendo os
desejos sexuais de inúmeros motoristas.
Há ‘Carmens’ que até dão sorte. Arrumam bons casamentos, lares
estruturados, mas passam por agressões e privações psicossociais tão
graves quanto se fossem moradoras de rua. Nesse momento, há ‘Carmems’
nas filas dos postos de saúde, nos terminais rodoviários, nas visitas
íntimas nos presídios, nos prostíbulos nordestinos e nos halls dos
renomados hotéis.
Essas eleitoras votam enquanto vivas, mas no fundo de seus âmagos,
sentem a morte a cada dia. Uma morte traduzida nas desigualdades
gritantes, quando a classe social, a cor e o sexo ainda são requisitos
para uma vida mais digna.
A Carmem capixaba, que votou após onze anos de falecimento, está hoje
em situação bem mais confortável do que as vivas. Onde está, pelo menos
não sofrerá, na pele, as angústias e os prejuízos que um voto mal
creditado traz. Aqui, as aptas ‘Carmens’ continuarão votando. Todavia,
mortas de decepção diante do cenário social que lhes é ofertado.
Enquanto isso, Carmem, a eleitora fantasma, aguarda o julgamento acerca da validade do seu voto. Mistérios do Céu e da Terra...
Cláudio Andrade